terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

clave de ferro

todas as músicas
esperam seu gole
no meu copo de vinho.
o músico espera.
sempre apresenta sua obra
antes de sua manobra.
e tarda.
as estrelas morrem
por esse tardar.
olha-se para o céu
e só basta meio samba
para a estrela estar nos braços
de outra dimensão.
todas as músicas 
esperam seu gole
no meu copo de vinho.
até me embriagar
e sujar minha camisa,
sozinho.

(scapin)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

as laranjas

Assim como meu pai, meus tios e meus primos, aprendi a descascar laranja com minha avó. O ritual sagrado da mesa do almoço tinha seu final com a chegada da grande bacia de laranjas. Doces, azedas ou as raríssimas seletas, carinhosamente chamadas por meu avô de pomos d’ouro. Junto com as laranjas vinham os pratinhos e as faquinhas. Tínhamos à nossa frente o necessário para a explicação de todas as coisas do mundo. E minha avó nos conduzia a essas descobertas.

A faca pontuda e afiada me dava a sensação e a responsabilidade de um adulto, a mesma que temos quando somos autorizados a escrever de caneta no colégio, deixando de lado o lápis com a tabuada em seu corpo. Minha avó sabia a tabuada de maneira elegante. Minha avó não me deixava ganhar partidas de xadrez. Era profundamente prazeroso receber xeques-mate com a elegância de minha avó. Todas as palavras estavam elegantemente combinadas para chegar até mim. Só minha avó descascava laranjas com aquela elegância.

Pega-se a laranja com uma mão. A faca com a outra. Sou canhoto. Logo invertíamos as funções de nossas mãos. A faca era colocada com as serras voltadas para o sentido contrário ao corpo. Roda-se mais a laranja e menos a faca. Sua casca sai num grande caracol gigante, que, claro, era quebrado em várias partes. Não por minha avó. Mas por todos os outros. Uma das primeiras lições que aprendi foi que ter sucesso com a laranja, retirando a casca por inteiro, era sinal de que já estava apto a casar. Casar ainda não era algo bem definido em minha cabeça. Na verdade nem sabia o que isso realmente poderia significar. E talvez até hoje não saiba. Retirar a casca por inteiro e sem feridas, essa sim a maior glória, era o desafio de sempre. Pouco me importava com a simpatia do casamento. E buscava cada vez menos feridas em minhas laranjas.

Com a laranja descascada vinha o grande dilema. O mesmo dilema que temos quando terminamos de construir, após uma tarde inteira debaixo do sol, o nosso próprio castelo de areia. Os castelos de areia, assim como as laranjas descascadas, não existem para terem vidas longas. E a maneira de retirar essa vida é de extrema importância. Assim, podíamos cortar a laranja com uma tampinha, duas tampinhas, com um bico, meio a meio, em gomos ou como a imaginação pudesse conceber em poucos segundos de reflexão.

Sempre destruí castelos de areia chutando-os.

Sempre gostei de cortar a laranja com uma tampinha. Chupa-se primeiro a tampa. Depois todo o corpo da laranja. A tampinha da laranja é como o primeiro beijo na menina do colégio. Dele saberemos o gosto que toda uma vida pode ter. Com ele tentamos evitar frustrações futuras. Ou alavancar as esperanças dentro do infinito feminino.

Com minha avó aprendi que não basta ser só homem. O homem precisa deste infinito que só a mulher possui. A mulher esconde toda a poesia do universo. Minha avó tinha apenas duas mãos, e todo o sentimento do mundo. Até hoje tento descascar laranjas como minha avó. Mas ainda preciso de um ponto de apoio. Minha avó descascava laranjas com a maestria de quem já retirara todas as cascas dos mistérios humanos.

(scapin)